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e corrigia a phrase destoante, gostava da oração larga e sonora, sahia-se mal e acanhado na dicção concisa, derramava-se em lyrismos como a pesada lyra dos árcades os exprimia era em fim o que ha cincoenta annos foram os talentos de primeira plana.

Se, todavia, isto era um se-não, que ardentes transportes, que enthusiasmos a sua, um tanto diffusa `linguagem, lhe enfeitava!

A onomatopeia, na palavra e no simile, era a sua rhetorica predilecta. Póde ser que a sobejidão dos termos comparativos destoasse na audição d'um publico estranho ás fórmas esplendidas; porém, quantas translações lhe ouvi eu com dissabor, que me parecem agora formosissimas na estampa! O poeta revê n'estas prosas, não sempre o poeta biblico; mas, assim mesmo, não ha ahi termo, que deva acoimar-se de profanidade intrusa e desajustado ao quadro religioso.

Alguma vez me pareceram nublosas e abstractas por de mais as orações do meu amigo. Uma ahi estå, proferida no templo de S. Francisco, do Porto, em 15 de Dezembro de 1851. O assumpto era a immaculada Conceição. N'um periodico religioso d'aquelle tempo, escrevi uma breve analyse ao magnifico sermão, e lembrei ao orador, assim erudito que despresumpçoso, a obrigação que lhe corria de se descer até ao povo inculto, atten

dendo menos á minoria das intelligencias. Lembrei-lh'o com as palavras de Luiz Muratori, o author do precioso livrinho, intitulado Eloquencia popular 1.

Para ajuizar-se de uma das excellencias de Camara Sinval - a modestia, não enroupada nas transparentes humildades do orgulho- vem a ponto aqui trasladar um periodo da carta que, alludindo à minha analyse, o eminente orador me escreveu:

«...

« Tem V. muita e muita razão. Clareza é a primeira virtude de todo o discurso oratorio. Mas que quer o meu amigo? Ser claro, para todas as intelligencias, em um sermão de Mysterio, de proposição, senão nova entre os theologos, de certo menos commum nos auditorios, e isto no improrogavel praso (como insinua

1 Cito as palavras do singelo e profundo escriptor: são conselhos que vão sempre bem deparados: « Dous generos ha de eloquencia: um, a sublime; outro, a popular. Com a sublime, formam-se discursos ricos de idéas grandiosos, engenhosos argumentos, brilhantes expressões, e arredondados periodos. Com a popular, expõe-se chãmente as verdades eternas, e ensinam-se ao povo cousas do alcance d'elle, em estylo simples e familiar, de modo que o ouvinte possa comprehender o que lhe foi enunciado. Não é sómente a sabios que fallaes da cadeira da verdade: fallaes tambem a ignorantes, os quaes, pelo ordinario, são a maior parte do vosso auditorio. Assim é que muito importa fallar sempre de modo chão e popular... Tão caras são a Deus as almas dos doutos como as dos indoutos, e o orador tem de obrigação ser prestativo a todos, sem estremal-os, conforme o dizer do apostolo: Sapientibus et insapientibus debitor sum.

ções de toda a parte me recommendavam) de meia hora... oh! difficuldade é eşta inteiramente superior ås minhas fracas forças. Tal a reputei desde o esboço do papel a que me refiro, e por isso nem sequer me propuz luctar por vencel-a... » 1.

D'este incidente, que mais nos aproximou, colhi eu a satisfação de ser honrado com a leitura dos sermões do meu amigo, consoante elle os ia compondo. Á leitura seguiam-se muitas, mas fugitivas horas de seductora palestra litteraria. Não eram já assumptos religiosos: eram bellos relanços da idade de ouro latina: Horacio e Virgilio que elle recitava como o abecedario; Seneca e Terencio; Tacito e Cicero; os poetas portuguezes de D. João 3.o; os proloquios rythmados de Sá de Miranda ; os chistes peregrinos de Gil Vicente; o Camões, nos mil casos em que vem a talho as maximas que lhe douram o bronze da sua perpetuidade, a honra incorruptivel de Portugal, como Sinval denominava os Lusiadas.

E de permeio, n'estas incansaveis tiradas de variadissima erudição, com que engenho e opportunidade o dizerto professor matizava os discursos de facecias delicadas, nobres, sem laivos de plebeismo, nem intenção amphibologica de må toada em ouvidos discretos! A proposito de qualquer magua que vos annuviava o sem10 Christianismo, n.o 2, de 10 de Janeiro de 1852.

blante de tristeza, referia-vos elle anecdotas analogas á vossa situação, umas para vos dar alma com exemplos de infortunios maiores; outras para vos obrigar a rir dos proprios infortunios, com tanto que tivesseis a felicidade de saber a latinidade dos chronistas da vida anecdotica de Roma ou Grecia que Sinval estudava os homens e as paixões nas sociedades antigas. Os homens d'este seculo dizia elle que eram formigas para se estudarem com o microscopio; ao passo que o vasto coração da humanidade velha pulsava em peitos de elephantes, e os estos d'aquelles enormes vultos abalavam o mundo, quando o peito lhes arquejava.

Um homem assim, como predestinado a fallar permanentemente em congregação de sabios, devia de parecer semsabor e inutil em um salão, onde a bagatella, e a futilidade reinam e conquistam ouvidos e olhos quando o coração não vai tambem desnorteado por esse magnetismo fatalmente absurdo.

Pois não vi ainda homem que prendesse com tão fidalgas maneiras, e narrativas graciosas, as pessoas que se temem dos sabios, como de importunos, que entram nos salões com sombria catadura, e o mau ar de quem vai chamar a juizo a ignorancia publica! Se Camara Sinval encontrava, ao par de uma senhora de meão entendimento, um caturra, explicando a Ursa menor, salvava a

dama da fereza d'aquelle urso maior, contando uma historieta ridentissima a proposito da astronomia. Se uma creancinha se achegava d'elle, tomava-a nos joelhos, e fallava á creancinha a sua linguagem.

Era o homem querido de toda a gente, menos d'alguns discipulos com quem o severo lente andou sempre mal avindo.

Camara Sinval não podia conformar-se com a insciencia litteraria dos seus alumnos. Não os punia por ignorarem a materia da aulą; reprovava-os por terem chegado ao fim da carreira medico-cirurgica sem saberem traduzir correntemente um aphorismo de Hippocrates, vertido em latim de missal.

A imprensa, uma ou outra vez, foi o respiradouro do estudante ferido nos seus creditos litterarios. Sinval não respondia, nem se acautelava dos avisos e ameaças. Ás minhas reflexões, que elle indulgentemente escutava, respondia: «Era obrigação minha reprovar um ignorante. Se este me matar, não hei de ser eu a unica victima, assim que lhe derem cartas de medico. »

Sinval tinha horas de cerrada tristeza. Empallidecia como se a aza da morte lhe congelasse o sangue d'aquelle rosto ainda ha pouco aberto e alegre. Então era o dorido recordar-se dos seus amigos extinctos, dos seus mestres queridos, das alegrias da sua mocidade mortas

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